Muitas pessoas se preocupam em ir para o Céu, fazem
sacrifícios para receber o Céu como recompensa, se esforçam para um dia
desfrutar dos benefícios que o Céu poderá oferecer. Apesar de ser uma boa coisa
querer ir para o Céu e se esforçar para alcança-lo, há uma coisa que pode ser
feita na Terra que já antecipa as bênçãos que serão recebidas no Céu. Trata-se
da amizade. Ellen G. White, escritora religiosa, escreve em Mente, Caráter e
Personalidade, pág.211: “O calor da verdadeira amizade, o amor que liga coração
a coração, é um antegozo das alegrias dos Céus.”
É interessante prestar atenção na qualidade que se emprega à
amizade verdadeira. Amizade verdadeira parece ser redundante, mas nem toda
amizade é verdadeira. Há amizades falsas, pretensas, aparentes e superficiais.
Tanto uma como a outra têm profunda influência na pessoa que dela participa. A
amizade verdadeira produz alegria, endorfina, calor e vida. A pretensa amizade
age lentamente, como um veneno, um tóxico que imobiliza, congela e mata toda
esperança de ser feliz. Uma é divina e outra é diabólica. É necessário escolher
o tipo de amigo que se deseja ser e ter.
Na amizade verdadeira
há um aprofundamento da relação, da intimidade, transparência, ou seja, você se
mostra cada vez mais na sua real maneira de ser, sem esconder o que se pensa,
sente, gosta, valoriza, prefere, aprecia. Há uma abertura tal que você não tem
medo de ser descoberto, pego de surpresa, exposto pelo que é, defende ou
acredita. Porém, quando a amizade não é verdadeira, há medo de ser diferente na
maneira de pensar, sentir e agir perante os outros. Numa amizade verdadeira,
você é aceito, respeitado, considerado, valorizado, apesar de suas falhas,
erros, deficiências e limitações. Em uma relação assim não estão presentes a
ameaça, o perigo da rejeição, da crítica, do julgamento moral de suas ações, de
suas convicções ou de sua pessoa. Mas se fazem presentes a segurança, a certeza
do apoio, da compreensão e da simpatia.
Tudo eu
Na verdadeira amizade, você experimenta e vivencia uma relação
de interdependência mútua. Você se entrega numa dependência total e tem plena
confiança no outro. Ao mesmo tempo, mantém o auto controlo da própria vida e a
autonomia das escolhas e opções de conduzir os próprios negócios e resolver os
próprios problemas. Não é uma relação de intromissão, de invasão,
interferência, mas de divisão, partilha, afeto e apoio. Na interdependência da
verdadeira amizade, os dois se apoiam mutuamente, crescem com mais vigor, mais
força e mais determinação de encarar os problemas existenciais de cada dia.
Com o amigo de
verdade, você não fica esperando que ele faça o primeiro movimento para você
interagir ou participar. Pelo contrário, você é o primeiro a correr o risco de
confiar, de ter fé no outro, de ter certeza de que as intenções são as
melhores. Você é o primeiro a dar apoio, amparo, a dar o que for preciso sem se
violentar como pessoa, para que o bem do outro seja atingido. A relação é o
movimento espontâneo e autêntico, até mesmo sem a preocupação da ordem de quem
é o primeiro ou quem fez o quê. É esse fluxo contínuo e ininterrupto de doação
e participação que caracteriza a verdadeira amizade. Não importa se você é ou
não traído em sua confiança; não importa se é ou não rejeitado em sua doação. O
que mais importa é você continuar dono do próprio comportamento. Parece até um
paradoxo: confiar, ser traído na confiança, mas continuar confiando. A traição
de uma pessoa não desmerece a confiança no ser humano. Por outro lado,
continuar confiando numa pessoa que lhe traiu é falta de inteligência, muita
desvalorização pessoal ou baixa auto-estima.
Cada um na sua
Quando você permite que o outro pense, escolha, fale, sinta
e aja por você, em nome da amizade, pode ter certeza de que a relação não é de
amizade, mas de abuso, desrespeito e desconsideração. Jamais assume a sua
posição. Quem faz isso não é amigo e quem aceita isso está muito mal na
avaliação que faz de si mesmo. A pessoa que precisa aceitar uma pseudo-amizade
em nome da verdadeira não tem uma visão adequada do que significa ser ou ter um
amigo. Uma pessoa assim, por sua carência, pode estar tentando fazer tudo para
agradar, mas de fato não consegue e acaba ficando cada vez mais carente, mais
só. Muitas vezes, redobra seus esforços para agradar e descobre com tristeza
que não consegue. Alguns nem entendem por quê.
Quando a amizade é
apenas uma fonte de desgaste, cansaço, vazio, quando você se sente com uma
carga nas costas, com raiva, irritado, quando está ou se afasta do amigo, sua
amizade não está fazendo bem para você. Não é verdadeira. Se você só sente
sacrifício, desgaste e sofrimento na relação, é hora de parar e reavaliar toda
a dinâmica da amizade. Se, ao se separar do amigo, você está abatido no seu
ânimo, desanimado nos valores, pesado na consciência, é porque a relação não
está sendo mútua. Você está sendo prejudicado. Isso porque numa relação de
amizade verdadeira, a sua individualidade não é comprometida, o seu estado
emocional é fortalecido e enriquecido. Mas é preciso ter pelo menos consciência
de você mesmo nos momentos de interação para ver se está mais seguro, apoiado,
amado e valorizado.
Solidariedade
Quando penso em amizade verdadeira, lembro-me de um amigo
que passou por uma experiência fantástica e difícil no ano passado, em que foi
feito um enorme sacrifício de solidariedade e apoio a um amigo injustiçado. Os
dois trabalhavam numa empresa. O António era o diretor e o João era seu
assistente. O diretor, por meio período de trabalho, ganhava perto de dez mil
dólares. Ele era eficiente, honesto e trabalhador. Por causa da sua honestidade
e respeito à hierarquia, foi demitido pelo dono da empresa. O dono não sabia
que o seu diretor era a alma do empreendimento. Os negócios balançaram. Para
substituí-lo, foi convidado o assistente com um salário de quase quinze mil
dólares. O António abriu mão do sacrifício, liberando o amigo João para aceitar
a proposta. O João entrou em crise. Ele precisava do emprego, mas… e a amizade?
E a injustiça cometida com António? Como ficaria a cabeça do João ao receber um
salário que custara a cabeça de seu melhor amigo? Dias de dilemas, angústias e
preocupações. Por fim, João chegou à decisão. Renunciou ao dinheiro e ao cargo,
preferiu conservar a fidelidade da amizade. Nem sempre a verdadeira amizade
cobra um preço tão caro assim. Porém, alguns cínicos acham que João tinha
outros motivos ou não precisasse de dinheiro. Muito pelo contrário, enquanto
ele procura emprego, as suas contas estão sendo pagas pelo trabalho da esposa e
pelo que recebeu pedindo demissão da empresa. O único motivo que o levou a essa
atitude foi a dedicação a uma verdadeira amizade, de que João não abriu mão. O
que acho mais incrível nesse caso foi o apoio da esposa de João com a atitude
que ele tomou.
Não ficam sem sentido
as palavras iniciais de que “o calor da verdadeira amizade… é um antegozo das
alegrias dos Céus”. Quem pode contar com um amigo é rico, é feliz, é saudável.
Amizade versus Popularidade
Não se pode confundir amizade com popularidade. Muitas
vezes, para se tornar popular, a pessoa precisa sacrificar seus princípios,
seus ideais, suas convicções e até o seu próprio corpo. Precisa entregar-se
para o uso e abuso de quem manipula a opinião pública. Precisa deixar de ser
gente para ser uma imagem vazia, sem sentimentos, adorada à distância. A
amizade não exige sacrifício, mas você pode se sacrificar, a amizade é calor
humano num encontro face a face. Promove o sentimento, o bem-estar e a
felicidade de uma pessoa viva. A amizade verdadeira enobrece sempre o
crescimento. Muitos adolescentes em carência afetiva, anseiam pela
popularidade, quando o que mais necessitam é de uma amizade verdadeira e fiel.
Na inversão de
valores em que vivemos, a busca pela popularidade é muito mais propaganda do
que amizade. É muito comum, num grupo, alguém querer ser popular humilhando e
ridicularizando um amigo – só para ter a atenção de todos. Não é de se
estranhar que a sequência dessa dinâmica seja uma profunda sensação de estar
só, algo experimentado por aqueles que não conhecem os benefícios de uma
intimidade profunda numa relação de amizade. Ser popular é ser solitário, é ser
de todos e não ser de ninguém. Ser amigo é ter companhia e ser de alguém.
É muito fácil saber
quem é um verdadeiro amigo. Basta observar e querer perceber, basta prestar
atenção ao seguinte: o verdadeiro amigo vibra com o seu sucesso, enquanto o
falso amigo “murcha”; o verdadeiro amigo empolga-se com a sua vitória, enquanto
o falso se desanima; o amigo de verdade se alegra com os seus ganhos, enquanto
o falso se entristece; o verdadeiro amigo se regozija com o seu progresso, mas
o falso se abate; o verdadeiro amigo se identifica com o seu trunfo, o falso
amigo se desvincula da sua felicidade. O verdadeiro amigo está sempre ao seu
lado, e não se sente prejudicado, diminuído ou ameaçado pelo seu crescimento.
Ele não sente ciúmes de suas vantagens, nem inveja suas qualidades, não faz uso
de você nem do que é seu para benefícios e fins pessoais. O verdadeiro amigo
não controla o outro para satisfazer os seus próprios desejos, para segurança
pessoal. Ele não se prende a você como uma cola, nem o fixa como o peixe no
anzol ou a âncora no barco.
Na verdadeira amizade, através de um respeito profundo pelo
outro, conserva-se a individualidade, mantém-se a separação, preserva-se a
entidade independente e autónoma, e sustenta-se a integridade do ser do outro.
Uma reflexão
importante deve ser: sou um amigo verdadeiro? Que espécie de amigo sou? Estou
mais preocupado em ter ou ser um verdadeiro amigo?
É na relação, sendo e
tendo amigos, que como seres humanos nos desabrochamos para atingir ao máximo
as potencialidades de que somos capazes.
Dr Belisário Marques
* Amigo e Amigo (Revista Mocidade, de 1994)
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