Uma das “razões” apresentadas para “justificar” que a lei
findou na cruz, é a indevida citação de Colossenses 2:14, 16 e 17, que assim
reza: “Havendo riscado a cédula que era contra nós nas suas ordenanças, a qual
de algum modo nos era contrária, e a tirou no meio de nós, cravando-a na cruz…
Portanto ninguém vos julgue pelo comer ou pelo beber, ou por
causa dos dias de festa, ou da Lua Nova, ou dos sábados, que são sombras das
coisas futuras, mas o corpo é Cristo.” – Sobre estes textos, procura-se armar
duas teses: a da in vigência da lei pós-cruz, e a da ab-rogação do sábado do
Decálogo. Vamos desmontá-las completamente, deixando que a própria Bíblia se
interprete, sem forçar a nota.
Notemos os seguintes
fatos, que saltam à vista:
→ Não há aí a mais leve referência à Lei Moral, ou à sua
súmula: o Decálogo. Não há, em todo contexto, alusão a nenhum preceito dos Dez
Mandamentos, mas sim a outros preceitos – isto é muito importante. Em Romanos
7:7, por exemplo, Paulo alude à “lei”, mas o contexto esclarece que se referia
a Lei Moral, porque um dos seus preceitos é citado, “não cobiçarás”, Tiago
também fala em “lei” (Tiago 2:10 e 11) e a seguir cita dois preceitos da Lei
Moral. Mas, no caso que se discute, nada consta do Decálogo. Nem a palavra
“lei” também é sequer mencionada nos textos, mas apenas uma cédula de
ordenança.
Sabemos que o preceito cerimonial consistia de extensas
instruções ritualistas a que os judeus ficavam obrigados. Um autêntico “escrito
de divida” – como reza outra tradução. “Ordenança” são prescrições litúrgicas,
e isto não se aplica Lei Moral. Compare em Hebreus 9:1. Ordenança “é um rito
religioso ou cerimonial ordenada por autoridade divina ou eclesiástica” –
define, com propriedade, o autorizado Standard Dictionary.
Coloquemos o quadro que Paulo nos pinta, na sua moldura
contemporânea. A igreja de Colossos (a exemplo das de Galácia, Éfeso, Roma e
outras) enfrentava dissensões internas em virtude da ação conservadora dos
elementos judaizantes, isto é, judeus que aceitavam o evangelho, ingressavam na
igreja, mas conservavam práticas do judaísmo e pretendiam impô-las aos cristãos
vindos do gentilismo. Entre estas práticas estava a observância da lei
cerimonial, notadamente os dias de festas (Páscoa, Pentecostes, Dia da
Expiação, Festa dos Tabernáculos, Lua Nova e outras). Como é natural, no passo
que estamos considerando, Paulo quis dizer aos cristãos de Colossos que estas
ordenanças e festividades foram riscadas ou cravadas na cruz tendo vindo
Cristo, a Realidade, automaticamente cessaram os tipos e “sombras” que para Ele
apontavam.
→ O contexto esclarece alguma coisa do conteúdo desta
“cédula de ordenança”. Alguns dos seus itens se acham registrados no versículo
16, ligado aos versículos anteriores pela conjugação “portanto”. Lemos que aí
consta comer, beber, festividades, lua nova e sábados prefigurativos, tudo
averbado de “sombras de coisas futuras”. Ora, resta ver em qual códigos
constavam tais exigências ritualistas e festivas.
Consultaremos o Decálogo. Examinemos-lhe os preceitos. Há
nele algum mandamento sobre comer ou beber? E sobre os dias de festas e Lua
Nova? Não! Nele só há preceitos morais e éticos. Nenhuma “ordenança”, portanto.
Sabemos que Moisés escreveu um livro, cujo o conteúdo consistia de estatutos
civis, preceitos de higiene, ordenanças levíticas e regulamentos sobre
festividades, Lua Nova, manjares, ofertas, sacrifícios, etc. (Deuteronómio
31:24 e Êxodo 24:4 e 7). A parte propriamente cerimonial e festival estava em
Êxodo 23:14 a 19; capítulos 29 e 30; Levítico 1 a 7, 21, 22, 23, etc. E todas
estas coisas estavam no livro de Moisés, mas não em tábuas do Decálogo,
escritas pelo dedo de Deus. (Êxodo 31:18)
Notemos que esta cédula de ordenanças nos era contrária.
Sim, porque a complicadíssima e onerosa lei Cerimonial, com suas exigências
difíceis e até penosas, tendo preenchido a sua passageira finalidade com a
morte de Cristo, se tornou in vigente, desnecessária e mesmo contrária ao
cristão. Não assim com a Lei Moral de Deus, que é santa, justa, boa, espiritual
e prazerosa (Romanos 7:12, 14 e 22), e estabelecida na dispensação evangélica,
Romanos 3:31. Não pode a Lei de Deus ser confundida com uma precária cédula de
ordenanças que foi riscada. Comidas, bebidas, festividades… Evidentemente, que
não se trata do Decálogo, mas meramente de coisas transitórias, “sombras de
coisas futuras” – como o próprio texto afirma.
Portanto, segundo a conclusão irrecorrível a que nos leva a
Bíblia, os textos em lide referem-se inequivocamente à lei Cerimonial. Foi
riscada, é evidente, e cravada na cruz.
Tão clara é a Bíblia! E ainda para, subsidiariamente,
concluir esta parte, citemos o notável comentador Adam Clarke, que sobre este
ponto diz:
“‘Ninguém vos julgue pelo comer ou beber’… O apóstolo aqui
se refere a algumas particulares do escrito de ordenanças, que foram abolidas,
a saber, a distinção de carnes e bebidas… e a necessidade da observância de
certos feriados e festivais, tais como a Luas Novas e sábados particulares ou
aqueles que deviam ser observados com incomum solenidade; todos eles foram
abolidos e cravados na cruz, e não mais eram de obrigação.” – Clarke’s
Commentary. Aí está uma interpretação insuspeita e valiosa!
“Nunca devemos rebaixar o nível da verdade, a fim de obter
conversos, mas precisamos procurar elevar o pecador corrupto à alta norma da
Lei de Deus.” – Ellen G. White, Evangelismo, pág. 136.