11 de Setembro; Afeganistão; Médio Oriente; Balcãs; Chechénia, Sudão, Egito, .... E histórias distantes: Vietname, as duas guerras mundiais, o Holocausto, a lista é interminável.
Mas uma coisa é clara: a história está encharcada de sangue. Desfigurada e mutilada pela violência e pelo mal. No entanto, poucos consideram o demónio responsável. Poucos o culpam. Para a esmagadora maioria, é sempre: “Por que, Deus?” Ou, no caso de terramotos, fomes e inundações: “Atos de Deus”
Para ter a certeza, a própria noção de um diabo vivo não só é absurda ao pensamento secular, como também é estranha para muitos cristãos. Mas se a ausência do diabo na imaginação secular é compreensível, a sua ausência da consciência cristã é incompreensível, já que ele não é periférico, mas central para o drama da salvação. Como em 1 João 3:8 sucintamente é colocada, “Para isto o Filho de Deus se manifestou: para destruir as obras do Diabo”.
Novamente, Hebreus 2:14 afirma: “também ele participou das mesmas coisas, para que pela morte aniquilasse o que tinha o império da morte, isto é, o diabo”. O próprio Jesus ofereceu a Sua libertação à pessoas possuídas pelo demónio como um sinal do advento do Reino de Deus (Mt 12:28). É por isso que na véspera de sua crucifixão, ele declarou exultante: “agora será expulso o príncipe deste mundo” (João 12:31).
A Antiga Serpente
Fundamental aqui é que a Bíblia apresenta claramente o diabo como um ser pessoal, e não como um mero símbolo do mal. Precisamente, o revela como um gênio do mal de poder sobrenatural, de profunda malícia, e horrível destrutividade. Jesus o chamou de assassino e pai da mentira (João 8:44). Paulo disse que ele se disfarça como um anjo de luz (2 Coríntios. 11:14). Apocalipse 12:9 descreve-o como o grande dragão, a antiga serpente, que lidera o mundo inteiro perdido.
E acrescenta esta séria advertência: “Mas ai da terra e do mar! porque o Diabo desceu a vós com grande ira, sabendo que pouco tempo lhe resta” (Apoc 12:12). 1 Pedro 5:8 ecoa o mesmo aviso: “Sede sóbrios, vigiai. O vosso adversário, o Diabo, anda em derredor, rugindo como leão, e procurando a quem possa tragar” (1 Pedro 5:8). Efésios 6:12 diz que “não é contra carne e sangue que temos que lutar, mas sim contra os principados, contra as potestades, contra os príncipes do mundo destas trevas, contra as hostes espirituais da iniqüidade nas regiões celestes” (Efésios 6:12).
Ao apresentar a vida cristã não simplesmente como uma luta contra os pecados pessoais mas como uma guerra cósmica entre o bem e o mal, o Novo Testamento revela as ocultas e profundas forças transcendentais por trás da experiência humana. E essas forças vem em acentuado relevo no livro do Apocalipse. Cristo, o cordeiro, guerreia contra Satanás, o grande dragão; e os animais (poderes terrestres) guerreiam contra a mulher pura, os santos. Ao todo, o Apocalipse, revela que as forças fundamentais que determinam a história do mundo não são políticas, sociais ou econômicas, mas cósmicas e espirituais.
Visto que a luta fundamental é cósmica e espiritual, Paulo lembrou aos cristãos: “as armas da nossa milícia não são carnais, mas poderosas em Deus, para demolição de fortalezas” (2 Coríntios 10:3-4). Simplificando, a guerra espiritual é travada com armas espirituais. Este ditado informa o princípio da não-violência cristã e também o mandato de Cristo de amar aos inimigos. Vistos no contexto do grande conflito, inimigos humanos são apenas agentes – embora agentes enganados ou vítimas do diabo – a serem desenganados ou ou vencidos pelo amor. O ponto é que, em vez de odiar os outros seres humanos, os cristãos dirigem sua inimizade para o verdadeiro autor do mal – o diabo. Então, novamente, a grande controvérsia fornece o contexto para o famoso aforismo de Paulo: “Não há judeu nem grego; não há escravo nem livre; não há homem nem mulher; porque todos vós sois um em Cristo Jesus” (Gálatas 3:28). Raça, classe e distinções de gênero tornam-se irrelevantes quando confrontadas com a distinção fundamental entre o bem e o mal.
A Ascensão da Superstição
Nos quadros da grande controvérsia, os pilares do evangelho, não podem ser descartados sem violência para a mensagem no coração do evangelho, isto é, a obra salvadora de Jesus. No entanto, é exatamente isso que aconteceu. Entre 150-400 dC, por causa da influência da filosofia grega, houve uma grande mudança do dualismo apocalíptico judaico do bem e mal, luz e trevas para o dualismo platônico grego do corpo e alma, espírito e matéria. No pensamento grego, a matéria era a fonte de todo o mal no universo. Em outras palavras, não tinha realidade intrínseca, ou existência real. Era simplesmente a falta do que era bom, uma deficiência.
Evidentemente, esta visão do mal encontra-se afastada da Bíblia. No entanto, ela foi aprovada por Padres da Igreja – Orígenes, Agostinho e outros – na tentativa de defender o evangelho contra as heresias dualistas maniqueístas e gnósticas que igualavam o diabo com Deus. Apesar de bem intencionados, estes esforços não apenas deslocaram o motivo da grande controvérsia no pensamento cristão, mas também obscureceram a figura do diabo como um ser pessoal. Não só isso, a idéia grega do mal era muito abstrata para fazer sentido para os antigos cristãos iletrados. Não admira que estes recorreram aos deuses pagãos e a magia para lidarem com o mal e à adversidade. Assim que os deuses pagãos passaram a ser adotados como padroeiros ou intercessores diante Deus.[1].
Essa mistura de folclore grego e idéias bíblicas do mal produziram na Idade Média, uma figura contraditória e confusa, e ao mesmo tempo bem-humorada e monstruosa do diabo. Por exemplo, diziam ser ele coxo por causa de sua queda do céu, na cor preta, com pés de bode, chifres, língua bifurcada, uma cauda e asas de morcego. Acreditavam que ele tomava uma variedade de formas humanas ou tipos de homem/animal, ou a forma de diferentes animais, pássaros e répteis. Os contos populares falavam das roupas que ele usava, de como ele dançava, de como era frio e peludo, e como ele poderia ser enganado ou iludido. E a igreja medieval reforçou essa tradição na sua arte, teatro, liturgia e sermões. Por exemplo, ela ensinou que o diabo era alérgico a água benta e podia ser combatido com o sinal da cruz e a invocação dos santos. Além do mais, o ensinamento da Igreja sobre o inferno e o purgatório deram ao diabo um papel que implicava aliança entre ele e Deus. Ela ensinava não apenas que o inferno era um lugar real no centro da terra, mas que Satanás e seus demônios o presidiam como capangas de Deus. Quanto ao purgatório, era uma casa de recuperação para as almas no caminho para o céu. Embora sob o controle de Satanás, a igreja poderia libertar uma alma mediante o pagamento de indulgências. Ao todo, essas inumeráveis e contraditórias idéias sobre o inferno e o diabo o fizeram uma figura por demais conhecida. Clichês como ”Dar ao diabo sua dívida”, “O Advogado do Diabo”, e outros se originaram na Idade Média e refletem essa brincadeira com o diabo.
As Terríveis Consequências
Esta brincadeira macabra era tão profunda que não é exagero dizer que a sociedade medieval tornou-se “morada de demônios, e guarida de todo espírito imundo” (Apoc 18:2). Na verdade, segundo Norman Cohn, um historiador não-cristão, ao longo dos séculos medievais as massas tornaram-se convencidas “de que o mundo estava nas garras de demônios e seus aliados estavam em toda parte, mesmo no coração da cristandade” [2]. Estes aliados, como ensinado pela igreja, eram judeus, hereges e muçulmanos. No caso dos judeus, eles não eram apenas acusados de serem o anticristo, mas também de canibalismo ritual e de espalharem pragas. Ainda mais, eram representados na “arte e no teatro como diabos com chifres e rabos, enquanto na vida real a igreja e as autoridades seculares tentaram fazê-los usar chifres em seus chapéus” [3].
Porque os judeus foram culpados por todas as calamidades naturais e sociais que aconteciam na sociedade medieval, eles ficaram no imaginário popular praticamente como sinônimos do demônio. Assim, milhares deles, juntamente com valdenses e os cátaros foram massacrados durante as Cruzadas. Em uma paródia clara das batalhas apocalípticas descritas no Apocalipse, os cruzados viram a sua guerra contra os “infiéis” como o primeiro ato na batalha final que terminaria no abate do próprio diabo. Não admira que a igreja medieval estendeu a Inquisição para bruxas e bruxos suspeitos, que, juntamente com os judeus e hereges pensavam que formavam uma grande conspiração dirigida por Satanás contra a cristandade. Ainda assim, os judeus foram colocados no centro dessa conspiração demoníaca porque a assembléia em que os supostos feiticeiros dobravam seu comércio e tinham orgias sexuais com o diabo era chamada sabá.
Uma característica importante dos julgamentos de bruxaria eram as torturas brutais usadas para extrair confissões. Eram contos tão horríveis e tão bizarros que contribuíram grandemente para a “morte do demônio” na consciência moderna. Para ter certeza, foi muito difícil para a Igreja defender a existência do diabo em face do horror e do fanatismo religioso, inspirado por meio das Cruzadas, da Inquisição e das guerras religiosas do século XVII. Além disso, o clímax da loucura das bruxas coincidiu com a ascensão da ciência moderna, que quebrou dogmas sancionados pela igreja, como o universo geocêntrico, e expôs todas as crenças cristãs ao ceticismo. E por volta do século XVIII, o ceticismo transformou Satanás, mesmo entre muitos cristãos, em uma relíquia da superstição medieval, um mero símbolo do mal.
Coube para as disciplinas modernas de economia, sociologia e psicologia preencherem o vazio criado pela morte “de Satanás.” Na economia de Karl Marx (1818-1883) ele atribuiu o mal a exploração capitalista. Crie uma sociedade sem classes, afirmou ele, e o mal cessará. E a sociologia em grande parte seguiu Marx em atribuir o crime e o mal às instituições sociais disfuncionais, enquanto que a psicologia, principalmente sob a influência de Sigmund Freud (1856-1939), reduziu a Satanás a uma projeção da psique e atribuiu o mal a impulsos reprimidos, inconscientes, ou sexuais. Em suma, a certeza aqui era que o mal poderia ser explicado e erradicado por meio da razão e da educação.
De Repente, Ele Estava Vivo Novamente
Mas esse otimismo ingênuo foi quebrado primeiro pela carnificina da I Guerra Mundial, e depois mais ainda pela II Guerra Mundial e o Holocausto. Ironicamente, o que deu ao Holocausto sua transcendente e destrutiva força foi o enxerto de temas apocalípticos às ideologias seculares do nacionalismo e do racismo. Em particular, e reminiscente ao anti-semitismo medieval, os nazistas transformaram os judeus em verdadeiros demônios, mas agora presos em uma luta cósmica com os arianos, a raça pura. “Dois mundos se enfrentam”, declarou Hitler, “os homens de Deus e os homens de Satanás! O judeu é o anti-homem, a criatura do outro deus. . . .Eu estabeleci o ariano e judeu uns contra os outros.”[4] Novamente, “eu estou agindo de acordo com a vontade do Criador Todo-Poderoso. . . . Eu estou lutando pelo trabalho do Senhor “[5].
Hitler, aparentemente, constituiu-se a si próprio como um Messias. O Terceiro Reich, previu ele, duraria mil anos. Mas antes do milênio, “os Satânicos judeus” deveriam ser exterminados. Numa paródia grotesca da destruição do tempo do fim dos ímpios, os nazistas queimaram 6 milhões de judeus em câmaras de gás. No entanto, apesar de caricaturizarem as crenças cristãs, as verdadeiras raízes da ideologia nazista estavam no ocultismo, uma mistura diabólica de religiões germânicas, teosofia, hinduísmo e gnosticismo. Por uma questão de fato, a afirmação de Hitler de que judeus eram “seres de um outro deus” está enraizada na antiga idéia gnóstica de que o deus judaico, o criador do universo material, era realmente o diabo.
O Santo Deus de Israel, o diabo? Que perversão e sacrilégio! Mas, então, esta profunda trama de satanás “deslocou sua própria e horrível crueldade de caráter para nosso Pai celestial” [6]. E, seres humanos, também. As idéias, imagens e mitos no coração do moderno anti-semitismo e do racismo eram antes atribuídas ao demônio na Idade Média. Como o diabo desapareceu com o advento da modernidade, esses mitos congelaram em torno de judeus e negros.[7] Andrew Delbanco faz o mesmo apontamento sobre o racismo americano, em seu livro A Morte de Satanás: Como os americanos perderam o Senso do Diabo.[8] É claro, projetar o mal sobre outros, é universal. Mas o fundamental aqui é que é uma consequência lógica da “morte do demônio”, ou mais precisamente, da capacidade do diabo de consumar e simular sua morte ou inexistência.
Na verdade, é por se fingir de morto que o diabo tem sido capaz de “prontamente controlar as mentes daqueles que estão inconscientes de sua influência.” [9] Ou, trazer o mundo todo sob seu domínio, ou até mais, levar os cristãos a cometer atrocidades monstruosas em nome de Deus, causando a Ele descrédito e até mesmo ódio. O ateísmo e falsas idéias sobre Deus não podem ser dissipados sem um conhecimento correto do caráter de Satanás, sua história de dissimulação, e suas obras.
O ponto crucial é: o diabo da Escritura deve ser separado do diabo do mito e da tradição. O diabo da Escritura não é uma piada ou um mero símbolo. Ele é real, pessoal e mal.
E ele, não Deus, deve ser responsabilizado por toda a miséria e mal que há no mundo.
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Referências1 See Jean Seznec, The Survival of Pagan Gods: The Mythological Tradition and Its Place in Renaissance Humanism and Art (Princeton University Press, 1972).2 Norman Cohn, Europe’s Inner Demons: The Demonization of Christians in Medieval Christendom (University of Chicago, 1973), p. 23.
3 Norman Cohn, The Pursuit of the Millennium (Oxford University Press, 1970), p. 78.
4 Cited in Lucy S. Dawidowicz, The War Against the Jews, 1933-1944 (Holt, Rinehart & Winston, 1975), p. 21.
5 Adolf Hitler, Mein Kampf, translated by Ralph Manheim (Houghton Mifflin Co., 1971), p. 65.
6 Ellen G. White, The Great Controversy, p. 534.
7 Jeffrey Burton Russell, Lucifer: The Devil in the Middle Ages (Cornell University Press, 1984), p. 193.
8 Andrew Delbanco, The Death of Satan: How Americans Have Lost the Sense of Evil (Farrar, Straus & Giroux, 1995), pp. 155-183.
9 White, The Great Controversy, p. 517.
Artigo de autoria de Elijah Mvundura publicado na Adventist Review de 12 de maio de 2005.
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