Em Romanos, Paulo nos diz que o homem, "tendo conhecido a Deus, não o glorificou como Deus... antes em seus discursos se desvaneceram, e o seu coração insensato se obscureceu" [1.21]. O que temos aqui, e que foi dito em outras aulas, é que o homem rejeita a ideia do Deus Vivo e Verdadeiro e, por isso, cria para si outro "Deus" ou deuses, de forma que o seu estado natural é de desobediência, de rebelião, de pecado. Sua mente e coração foram obscurecidos pelo pecado, levando-o a cogitar e afirmar insanamente que não há Deus ou que há muitos deuses, ou ainda que há outro deus e, assim, o conhecimento inato e inerente ao homem é anulado, com o objetivo de não glorificá-lo. Por isso, a Bíblia chama o homem que vive à margem e à parte de Deus de ímpio. A palavra ímpio origina-se do latim "impius", significando que esse homem é herege, incrédulo, que não respeita nem teme a Deus. Certamente o termo pode ser usado por qualquer religião, para designar aquele que não a segue, que não se submete a determinada fé ou a professa. Mas como o nosso interesse é o bíblico, ela nos remete àquela pessoa que rejeita, despreza, e peca contra o Deus santo, o Deus bíblico. Todo aquele que tem o seu prazer em si mesmo, não busca a Deus, nem a sua justiça e o seu reino, é um ímpio; como o salmista diz: "Pela altivez do seu rosto o ímpio não busca a Deus; todas as suas cogitações são que não há Deus" [Sl 10.4]. O ímpio é todo ateu prático, ainda que ele creia na existência de um ser supremo, e até mesmo o cultue acreditando fazê-lo em nome de Deus. Para o ímpio, incrédulo, ou ateu prático, não há o Deus bíblico, há múltiplos e diferentes deuses; porém, cada um, em si mesmo, é o reflexo do próprio homem, o que, em suma, configura uma auto-idolatria, o adorar-se e ser autoridade de si próprio.
A Escritura nos revela uma galeria de ímpios: os que cobiçam, mentem, roubam, e matam, aqueles que maquinam o mal, por exemplo [Pv 6.14]. Mas nenhum crime é pior do que o de rejeitar a Deus, desobedecê-lo, e rejeitar a sua palavra. Na verdade, todos os outros crimes, pensados e praticados, originam-se destes; os quais são reflexos do afastamento do homem de Deus, da sua recusa em reconhecer que há somente o Deus bíblico, e de que ele é o Senhor ao qual todos os homens devem glorificar e honrar. O pecado é o que aparta o homem de Deus, e o afastar-se dele é mantido pelo mesmo pecado. Há um círculo vicioso em que um compele ao outro, e o outro mantém aquele. O homem está afastado de Deus por causa do pecado, da sua transgressão, e é ele que o conserva no mesmo estado, sem mudança. Por si mesmo é-lhe impossível achegar-se; é necessário que Deus se apiede, tenha misericórdia, e, então, somente então, ele aproxima-se do homem, trazendo-o à sua comunhão. Novamente, com isso, não estou dizendo que não somos responsáveis pelo nosso afastamento, pelo distanciamento, por nos manter desligados dele. Em nossa natureza caída, nós queremos, ansiamos, e buscamos manter a distância, e andar vagueando à procura de um outro deus, um impostor que satisfaça o desejo veemente de nosso ser, pois, ao contrário de Deus, não é possível ao homem se satisfazer em si mesmo: ele precisa de Deus. Acontece que esse deus jamais será suficiente e capaz de fazê-lo.
Há um ditado que diz: nem tudo que reluz é ouro. Existem muitos metais que reluzem: prata, cobre, aço, etc, mas suas características são distintivas do ouro, o qual é particular em seus atributos, nos elementos que o constituem. Guardadas as devidas proporções, pois se trata de uma analogia, e nenhuma analogia pode descrever fielmente a natureza divina, que é única, perfeita e incomparável, Deus não pode ser distintivo e múltiplo na variedade de deuses e cultos, da forma como os seus adoradores pressupõem. Ele não pode, ao mesmo tempo, ser um e outro, e ainda outro, assim como o ouro não pode ser nem prata nem cobre [ainda que eles estejam na categoria dos metais]. Por isso, a mente humana sempre optou em criar vários deuses, a fim de que a inconstância e incoerência humana sejam satisfeitas em todos os detalhes. Mas pouquíssimos deles revelam algo verdadeiro de Deus; tornando-o cada vez mais desconhecido do homem, e este cada vez mais ignorante de Deus. E, no que resta, há muito pouco dos atributos divinos, ou não há nada; e o que há é o culto, a adoração ao homem pelo homem [ainda que mascarado, sublimando]. Toda religião que não professa a adoração ao Deus bíblico, ao único Deus, aquele que se auto-revela, e através do qual unicamente o homem pode conhecê-lo, não é religião.
Aqui temos um importante elemento, o do Ser Supremo. Não "seres supremos", o que é impossível, mas apenas um. O próprio Senhor nos diz, repetindo o verso de Dt 6.4: "O primeiro de todos os mandamentos é: Ouve, Israel, o Senhor nosso Deus é o único Senhor" [Mc 12.29]; e, complementou em sua oração: "E a vida eterna é esta: que te conheçam, a ti só, por único Deus verdadeiro, e a Jesus Cristo, a quem enviaste" [Jo 17.3]. Cristo não abre precedentes para que qualquer forma de adoração seja possível, nem para a possibilidade de que todas as crenças sejam abarcadas em um único significado e propósito. Não há como não rejeitar toda e qualquer adoração e culto que não seja dispensado ao Deus bíblico. Todo Deus fora da Escritura é falso; e uma imagem distorcida daquilo que o próprio homem traz em si mesmo. Esse "Deus", nada mais é do que o reflexo do homem; é ele olhando para si e, ao mesmo tempo, objetando usurpar o trono celeste, e assumi-lo. Em seu delírio, ele presume que o ser finito, limitado e temporal possa ocupar o posto do Ser infinito, perfeito, pleno, e eterno. Se Deus é suficiente em si mesmo, Auto-existente em si mesmo, livre e independente, não
Deus é um, único; ele é real. Dizer que há muitos deuses é dizer que não há Deus nenhum. Dizer que existe um outro Deus, não revelado sobrenaturalmente, e que se deu a conhecer sobrenaturalmente, também é não crer nele. Dizer que todos os caminhos levam a Deus, é dizer que o errado é o certo, e o certo, errado; de que a verdade não está nele mas naquilo que pensamos dele. Mais uma vez, o homem quer-se fazer autoridade, inclusive sobre Deus, e a ideia do ecumenismo e do universalismo nada mais é do que o estratagema maligno de acomodar todos os homens e seus pecados numa única cumbuca e, assim levar todos à destruição. Mas mais do que isso é pretender que Deus seja igualmente tolo, como tolo é aquele que se aventura a uma crença genérica e difusa, em que o Senhor não passa de um Deus lamuriante, a buscar ser aceito de qualquer maneira pelo homem. Transferimos a ele a nossa doença, a nossa psicopatia, e não há mais como distingui-lo de nós; como se fôssemos quem lhe dá a vida, quem o sustenta e alimenta, e não o contrário; significando que todos os deuses ou, mesmo o não ter nenhum deus, não passam de projeção humana, revelando o que o homem é, e suas limitações. Com isso, estou a dizer que todas as crenças e religiões, todos os deuses e não-deuses, todas as formar humanas de cultuar partem do conhecimento que o homem tem de si mesmo, ou a expectativa de quem ele seja para formatar um ídolo. Parte-se sempre do homem para Deus, da auto-revelação humana para se definir o Ser de Deus, o que é um gravíssimo erro, visto ele ser conhecido somente pelo que revela, de si mesmo. O que não se torna em capricho o homem buscar definir Deus, nos aspectos em que nos é possível fazê-lo à luz da Escritura, com o risco de, ao não fazê-lo, adorar um Deus desconhecido, no qual não há uma personalidade ou, quando muito, adorar um deus que se pareça tanto com o homem que acabe se confundindo com ele. Por isso, resta-nos perguntar: quem é Deus? Sabendo que apenas o espírito regenerado em união com o Espírito regenerador poderá ter a resposta correta. Ver Dt 4.35,39; 1 Sm 2.2; Is 44.6-8
O Cristianismo declara a fé no Deus eterno, todo-poderoso, ilimitado, imutável, e infinito, ao contrário do panteão de deuses criados pelo homem fora da revelação especial; os quais são invariavelmente imperfeitos, limitados, muitas vezes não passando de réplicas do próprio homem, ou assumindo formas da criação. O Deus bíblico não se compara nem pode ser comparado com nada. Como já foi dito, ele é único [Dt 4.35,39; 1Sm 2.2; Is 44.6.8]. Mas também é quem, em sua perfeição e santidade, se relaciona com os seus filhos, os quais são filhos por adoção, através do Filho eterno, Jesus Cristo. E isso se dá exatamente por não ser nós a defini-lo, mas ele é quem se autodefine para nós. Mesmo sendo a linguagem humana limitada, ele se utiliza dela para levar à nossa mente limitada o entendimento de quem é, um entendimento parcial, pois não nos é dado conhecê-lo além do que se revelou e deixou-se revelar, sob pena de se construir um ídolo. Deus é o que é. Ele nos diz: "Eu sou o que sou" [Ex 3.14]. E o que ele quis dizer? Ora, de que ele era o que sempre foi e sempre será: Deus. E de que não pode ser nem nunca será o que não é. Deus se apresenta como auto-suficiente em si mesmo. E temos aqui um outro aspecto muito interessante que é o da singularidade divina, o fato dele ser único, incomparável, de que não há nada igual a ele, de forma que ele é a origem de tudo o que foi criado, sendo ele o mantenedor de todas as coisas, o princípio e o fim delas, mas o Ser eterno, não tendo ele mesmo princípio, nem sendo gerado por outro. Deus é absoluto, o único absoluto, independente, e sua identidade está no caráter impar que o distingue de tudo, de todas as coisas. E quais são essas coisas, as quais definem Deus?
Primeiro, é necessário dizer que, antes de tudo, Deus é um Ser pessoal. Ele tem uma personalidade, e características que o definem como Deus. A Bíblia nos revela exatamente aquilo que ele quis nos fazer conhecer, de forma que é possível não apenas conjeturar mas ter certeza, afirmar quem é Deus. E isso é definido por sua pessoa, a qual, sendo Espírito, invisível, ainda assim se relaciona com as suas criaturas e filhos. Com os primeiros, como Criador, com os segundos, como Pai. Em ambos, age como Senhor; sobre os quais ele está, e sob quem todos estão. Por isso, ele também é chamado de Soberano, aquele que está revestido da autoridade suprema, que governa com absoluto poder. Mas a questão é, como saber quem é Deus?
É impossível saber quem é determinada pessoa sem conhecê-la. Quando alguém me pergunta: Quem é Pedro? Para que eu responda exatamente é necessário conhecê-lo para, então, descrevê-lo, e identificá-lo ao meu interlocutor. Caso isso não aconteça, responderei: Não faço a menor ideia de quem ele seja! Ainda há a possibilidade de eu inventar um Pedro fictício [e poderei criá-lo por vários motivos, desde uma pilhéria para com o interlocutor, ou algum outro interesse], mas ele não será nada além daquilo que é: uma simulação, um personagem imaginário, irreal. Mas ainda que eu conheça o Pedro, e ele exista, e tenhamos uma relação pessoal, não quer dizer que eu conheça todos que se chamam Pedro. Da mesma forma, o meu interlocutor, ainda que ouça atentamente a minha descrição dele, uma descrição analítico-descritiva, e saiba de detalhes da sua vida pessoal, não terá uma relação pessoal com ele, pois ela se estabelece pela reciprocidade, pela correspondente mutualidade.
Concluí-se então que ninguém poderá responder à pergunta, “quem é Deus?”, sem conhecê-lo. O máximo que ele poderá é especular, no sentido de defini-lo teoricamente, como objeto de estudo, sem que haja um relacionamento pessoal mútuo. Por isso a importância da Escritura, a forma em que ele quis se revelar, fazer-se conhecer ao homem. Qualquer um pode ter esse conhecimento especulativo, bastando para tanto ler a Bíblia, como qualquer teórico pode fazer e faz com a matéria do seu estudo; uma vez que ela não o descreve como um ser abstrato, vago, indefinido, mas como o Deus vivo, sábio e perfeito. Mas isso não é suficiente para se conhecê-lo. Guardadas as devidas proporções, seria o mesmo que alguém dizer conhecer o Monte Fuji sem jamais ter ido ao Japão. Sei da existência do monte; sei o que ele é; onde fica; mas não o conheço verdadeiramente. Seria necessário eu viajar até ele para ter o conhecimento completo. Há quem diga que isso não é necessário. Eu não acredito. Alguém pode descrever uma paella, em seus mínimos detalhes, quanto à forma, composição, sabor, aroma, mas enquanto eu não cheirá-la, comê-la, terei apenas o conhecimento teórico, e não-prático. Com isso não quero dizer que a experiência é suficiente para se conhecer as coisas, mas sem ela o homem poderá facilmente viver no "mundo da Lua", e ter uma vida irreal. Ao contrário do que os empiristas afirmam, não concordo que a verdade possa ser conhecida pelos sentidos, pois eles são enganosos, assim como tudo o que o homem é, pois, caído, contaminado pelo pecado, teve a sua natureza pervertida, o que o tornou incapaz de se aproximar da verdade [1]. Porém, contudo, não estou a dizer que o homem não possa conhecê-la. Contradição?
Sem entrar nos pormenores da regeneração [que veremos mais à frente], o fato é que a ação do Espírito Santo é a única forma de o homem, impedido em si mesmo e por si mesmo, conhecê-lo. Quando a mente obliterada pelo pecado é transformada, esse homem passa a ter a mente de Cristo, tornando-se capaz de admitir como verdadeiro o Deus bíblico. A experiência pessoal, sempre uma iniciativa divina, em primeiro lugar, capacitará esse homem ao conhecimento. Sem isso, o que ele terá é uma "sombra" do conhecimento, um espectro embaciado, sem que a imagem se forme, e mantenha-se encoberta.
Em tudo isso, o que importa, no fim-das-contas, é que Deus quis se relacionar com os seus filhos, porque ele é o Deus pessoal; de outra forma, se essa não fosse a sua vontade, não haveria como os homens conhecê-lo, já que, por si mesmos, é-lhes impossível. Temos então o seguinte:
1) Deus somente pode ser conhecido pela Bíblia, pois ele se deu a conhecer através dela, que é a sua palavra. Nela ele descreve-se como quis se manifestar, e tornou-se patentemente o Deus conhecido. De forma que o homem natural pode ter algum conhecimento de Deus, um conhecimento teórico, mas insuficiente para conhecê-lo como o Deus vivo e verdadeiro. Seria o mesmo que um surdo diante de uma orquestra; ele veria os movimentos, os instrumentos, os concertistas, o maestro... Veria a plateia, as palmas, e tudo o mais que envolveria o concerto. Mas estaria impossibilitado de ouvir a peça musical. Entenderia o que se está passando, o que está acontecendo, mas não apreenderia a mensagem; a comunicação entre o autor e o ouvinte não se completaria, mantendo-se obscura.
2) O Espírito Santo, ao regenerar a mente e o espírito do homem natural, torna-o capaz de conhecer a Deus pela revelação especial; de forma que ela terá um significado humano, mas também sobrenatural; e, assim, a voz sobrenatural de Deus é comunicada inteligivelmente, sendo possível ao homem conhecer a verdade, a qual é o próprio Deus, revelado na Escritura.
E, então, poderemos, finalmente, responder, quem é Deus? Mas, primeiro, precisamos saber o que ele diz de si mesmo.
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