O material abaixo foi extraído de outro artigo do Dr.
Bacchiocchi mais completo e profundo sobre a campanha do “Deixados Para Trás”,
abaixo anunciado. Trata em maior detalhe sobre um importante aspecto nessa
discussão, o papel de Israel nas profecias. Contudo, eis algumas reflexões
sobre esta questão do papel de Israel nas profecias:
Avaliação do Ponto de
Vista dos “Dois Povos”
É o conceito de uma distinção radical entre o plano de Deus
para Israel e para a Igreja um ensino bíblico válido ou um pressuposto
infundado? Acaso o ponto de vista neotestamentário para a Igreja é o de um povo
diferente e separado do povo do “Israel natural”? A resposta é abundantemente
clara. O Novo Testamento considera a Igreja, não como uma “intercalação”
temporária, mas como continuação do verdadeiro Israel de Deus. Para verificar
esta última posição, breve alusão será feita a algumas relevantes declarações
de Cristo, Pedro e Paulo.
O Ajuntamento do
Verdadeiro Israel por Cristo
Ao chamar e ordenar doze discípulos como Seus apóstolos,
Cristo manifestou a intenção de reunir o remanescente messiânico das doze
tribos de Israel num novo organismo, chamado a Igreja (Mat. 16:18-19). Este não
é um organismo independente designado a repor Israel temporariamente mas um
rebanho que reúne tanto as “ovelhas perdidas da casa de Israel” (Mat. 10:6; cf.
15:24; Atos 1:8) como as ovelhas perdidas do mundo gentílico.
Referindo-se à profecia de Isaías com respeito à reunião dos
gentios, Cristo anunciou: “Ainda tenho outras ovelhas, não deste aprisco; a Mim
Me convém conduzi-las; elas ouvirão a Minha voz; então haverá um rebanho e um
pastor” (João 10:16; cf. Isa. 56:6-8). Como pastor messiânico, Cristo veio
reunir o remanescente de Israel e gentios, não em dois rebanhos separados, mas
num só rebanho.
Quando elogiando a fé do centurião, Jesus disse: “Digo-vos
que muitos virão do Oriente e do Ocidente e tomarão lugares à mesa com Abraão,
Isaque e Jacó no reino dos céus. Ao passo que os filhos do reino serão lançados
para fora, nas trevas”. (Mat. 8:11-12). É digno de nota que Cristo não promete
o Reino de Deus a uma futura geração de judeus, como alguns dispensacionalistas
mantêm, mas a crentes de todas as nações, “do Oriente e do Ocidente”.
Uma Realidade
Presente
O reino messiânico prometido no Velho Testamento é visto por
Cristo não como um evento futuro envolvendo a restauração territorial e
política de Israel, mas como uma realidade presente que raiou mediante Seu
ministério vitorioso sobre o pecado, Satanás e a morte.
“Se, porém, Eu expulso demónios, pelo Espírito de Deus,
certamente é chegado o reino de Deus sobre vós” (Mat. 12:28). O reino de Cristo
é composto, não por dois povos separados, Israel e a Igreja, mas por um povo, o
“Novo Israel”, consistindo de judeus e gentios crentes.
Aos discípulos Jesus declarou: “Não temais, ó pequenino
rebanho; porque vosso Pai Se agradou em dar-vos o Seu reino” (Lucas 12:32).
Notem que o prometido Reino messiânico é dado não a uma futura geração de
judeus (Mat. 11:29; 13:38; 8:11-12).
F. F. Bruce comenta adequadamente: “O chamado de Jesus por
discípulos para estarem junto a Si a fim de formarem o ‘pequenino rebanho’ que
receberia o Reino (Lucas 12:32; cf. Dan 7:22, 27) O assinala com o fundador do
Novo Israel”.
Os profetas falam de Israel como rebanho ou ovelha de Deus
(Isa. 40:11; Jer. 31:10; Ezeq. 34:12-14). Ao chamar Seus discípulos de
“pequenino rebanho” ao qual Deus estava dando o Reino, está inegavelmente
identificando Seus discípulos quanto ao verdadeiro remanescente de Israel.
Ademais, ao comissionar Seus apóstolos para “fazer
discípulos de todas as nações” (Mat. 28:19), Cristo
revelou que a missão
profética do Israel nacional (Isa. 49:6; 60:3) estava sendo cumprida por Seu
rebanho messiânico, a Igreja, que consiste de discípulos procedentes de todas
as nações. Israel prossegue existindo, não à parte da Igreja, mas como parte
dela.
A Descrição do Novo
Israel por Pedro
Pedro, à semelhança de Cristo, via a Igreja como cumprimento
das promessas feitas ao antigo Israel. No dia de Pentecoste, Pedro declarou que
a profecia de Joel concernente à restauração messiânica de Israel (Joel
2:28-32) se estava cumprindo através do derramamento do Espírito Santo sobre a
Igreja (Atos 2:16-21).
Para Pedro, a Igreja não é uma entidade não-predita no Velho
Testamento, nem uma interrupção temporária do plano divino para Israel; antes,
é o cumprimento do remanescente escatológico de Israel.
Se o início da Igreja é visto por Pedro como cumprimento de
uma profecia concernente a Israel, temos razões em crer que os eventos finais
da Igreja devem também representar o cumprimento de certas profecias do Velho
Testamento relativas a Israel.
A Igreja é o Novo
Israel
É digno de nota que Pedro aplica à Igreja aqueles títulos do
Velho Testamento que designam a Israel: “Vós, porém, sois raça eleita,
sacerdócio real, nação santa, povo de propriedade exclusiva de Deus, a fim de
proclamardes as virtudes Daquele que vos chamou das trevas para a sua
maravilhosa luz, vós, sim, que antes não éreis povo, mas agora sois povo de
Deus, que não tínheis alcançado misericórdia, mas agora alcançastes
misericórdia” (1 Ped. 2:9-10).
Esta descrição da Igreja é uma combinação de três passagens
veterotestamentárias (Êxo. 19:6; Isa. 43:20-21; Oseias. 1:6, 9; 2:1) que
caracterizam o povo de Deus. Pedro reúne a visão de Israel do Velho Testamento
e proclama seu cumprimento na Igreja.
Em palavras bastante claras, Pedro demonstra que a “raça
escolhida” não é mais exclusivamente os judeus étnicos, mas tanto crentes
judeus quanto gentios. A Igreja é o novo Israel que cumpre as promessas feitas
ao Israel do Velho Testamento.
A Visão de Paulo do
“Israel de Deus”
À semelhança de Cristo e Pedro, Paulo também via a Igreja
como o verdadeiro Israel. Falando aos judeus reunidos na sinagoga em Antioquia
da Pisídia, Paulo afirmou: “Nós vos anunciamos o evangelho da promessa feita a
nossos pais, como Deus a cumpriu plenamente a nós, seus filhos, ressuscitando a
Jesus” (Atos 13:32-33).
Neste discurso Paulo explica que as promessas de Deus aos
pais foram cumpridas na ressurreição de Cristo. O cumprimento não resulta no
estabelecimento de um reino judaico durante o milénio, mas no “perdão dos
pecados” concedido mediante Cristo a “todo o que crer” (Atos 13:38-39).
As promessas feitas a Israel são, portanto, cumpridas na
Igreja do Novo Testamento, não mediante uma restauração política dos judeus
étnicos, mas através de uma redenção espiritual de todos os crentes.
Na epístola aos gálatas, Paulo emprega a frase “o Israel de
Deus” inclusive tanto de judeus quanto de gentios: “Nem a circuncisão é cousa
alguma, nem a incircucisão, mas o ser nova criatura. E a todos quantos andarem
de conformidade com esta regra, paz e misericórdia sejam sobre eles e sobre o
Israel de Deus” (Gal. 6:15-16).
Alguns dispensacionalistas mantêm que a frase “o Israel de
Deus” refere-se exclusivamente aos judeus crentes. Eles traduzem a palavra
grega kai como “e”, significando “adicionalmente a”. Destarte, “o Israel de
Deus” refere-se exclusivamente aos cristãos judeus que Paulo supostamente
distingue da igreja como um todo, porque deixaram o legalismo para seguirem a
regra de Cristo.
Unidade de Judeus e
Gentios
Esta interpretação, contudo, ignora tanto o contexto
imediato de Gálatas quanto a ênfase teológica mais ampla. O contexto imediato
fala de “quantos andarem de conformidade com esta regra”. Isso deve incluir os
crentes judeus e gentios, uma vez que é dito que tanto a circuncisão quanto a
incircuncisão nada representam.
Assim, o “Israel de Deus” é uma descrição adicional de ambos
os grupos que andam “de conformidade com esta regra”. O contexto mais amplo
realça a unidade que ambos os grupos compartilham em Cristo: “Não pode haver
judeu nem grego; nem escravo nem liberto; nem homem nem mulher; porque todos
vós sois um em Cristo Jesus. E, se sois de Cristo, também sois descendentes de
Abraão, e herdeiros segundo a promessa” (Gál. 3:28-29).
À luz do contexto imediato e mais amplo, o “Israel de Deus”
não pode ser um grupo distinto de judeus crentes, à parte dos gentios crentes.
Alegar assim representa destruir a própria unidade que Paulo se empenha em
estabelecer.
Antes, a frase “Israel de Deus” foi empregada por Paulo como
uma maneira explicativa para qualificar adicionalmente “quantos andarem em
conformidade com esta regra”. Ou seja, pessoas crentes judeus e gentios.
A Integração dos
Gentios no Israel, por Paulo.
Paulo ensina repetidamente a integração de gentios em Israel
como herdeiros das promessas de Deus. Em Efésios ele claramente explica que os
gentios que noutro tempo estavam “sem Cristo, separados da comunidade de
Israel, e estranhos às alianças da promessa” (Efé. 2:12), não mais são
“estranhos às alianças da promessa . . . mas . . . não mais estrangeiros e
peregrinos, mesmo concidadãos dos santos”, como membros da “família de Deus”
(Efé. 2:19).
Essa integração de gentios à “comunidade de Israel” e “às
alianças da promessa” tiveram lugar mediante Jesus Cristo que uniu tanto os
judeus quanto os gentios “para que dos dois criasse em si mesmo um novo homem,
fazendo a paz, e reconciliasse ambos em um só corpo com Deus, por intermédio da
cruz, destruindo por ela a inimizade” (Efé. 2:15-16).
O pensamento de um propósito separado para crentes judeus na
presente era ou num futuro milénio é aqui totalmente excluído por Paulo. De
fato, tal pensamento destruiria a própria unidade de judeus e gentios que
Cristo realizou.
Paulo explica aos efésios que foi pela revelação de Deus que
se tornou conhecida a ele este “mistério” de como “os gentios são co-herdeiros,
membros do mesmo corpo e co-participantes da promessa em Cristo Jesus por meio
do evangelho” (Efé. 3:5-6).
Três vezes Paulo ressalta aqui que os gentios compartilham
com Israel a promessa da aliança. Qualquer sistema teológico que divida o que
Deus ajuntou está operando contra o propósito divino.
A Imagem Paulina da
Oliveira
Em Romanos 9-11 Paulo descreve a integração de gentios em
Israel utilizando a imagem efetiva do enxerto de ramos bravos de oliveira
(gentios) à única oliveira do Israel de Deus (Rom. 11:17-24). Observem que para
Paulo a salvação dos gentios não resulta no brotar de uma nova oliveira, mas em
enxertar os gentios na mesma oliveira.
A árvore de Israel não é arrancada por causa de descrença,
mas é podada, ou seja, reestruturada mediante o enxerto de ramos gentios. A
Igreja vive da raiz e tronco do Israel do Velho Testamento (Rom. 11:17-18). Por
meio dessa expressiva imagem, Paulo descreve a unidade e continuidade que
existe no plano redentor de Deus para Israel e a Igreja.
Inter-relação Entre
Israel e a Igreja
Os dispensacionalistas apelam a Romanos 11:25-26 para
argumentar em favor de uma futura conversão da nação de Israel,
independentemente da Igreja. A passagem assim reza: “Porque não quero, irmãos,
que ignoreis este mistério, para que não sejais presumidos em vós mesmos, que
veio endurecimento em parte a Israel até que haja entrado a plenitude dos
gentios. E assim todo o Israel será salvo” (Rom. 11:25-26).
Os dispensacionalistas explicam esta passagem como ensinando
uma conversão em larga escala da nação de Israel após a reunião da plenitude
dos gentios estar completa, pouco antes do tempo do Retorno de Cristo.
Essa interpretação ignora quatro importantes observações:
Primeiro, a frase “todo Israel será salvo” dificilmente se
refere apenas à última geração de judeus, uma vez que esta seria apenas uma
fração de todos os judeus que viveram.
Em segundo lugar, o texto não está discutindo a sucessão
temporal, mas a maneira pela qual Israel será salvo. O texto não diz “e então
[após a reunião dos gentios] todo Israel será salvo”. Antes, declara: “E assim
[desse modo, pelo fato de os israelitas serem movidos por ciúmes pela salvação
dos gentios] todo Israel será salvo”.
Em terceiro lugar, os judeus estão sendo salvos por serem
reenxertados na mesma oliveira em que os gentios também estão. Assim, a
salvação dos judeus não ocorre independentemente da dos gentios, mas
concomitantemente a isso.
Por fim, se a reunião de um número pleno de gentios tem
lugar ao longo da história, há razão para duvidar que o mesmo também seja
verdadeiro quanto à reunião dos judeus. De fato, no vs. 31 Paulo
especificamente declara que os judeus “agora foram desobedientes, para que
igualmente eles alcancem misericórdia, à vista da que vos foi concedida”.
Essas observações claramente indicam que Paulo aqui não está
apresentando uma ordem de dispensações sucessivas, mas uma promessa de
inter-relação dinâmica entre a salvação de Israel e a da Igreja.
O equivocado pressuposto de dois povos com dois destinos em
grande medida deriva de uma teologia de desprezo para com os judeus, antes que
do ensino bíblico de um rebanho, um pastor, e um destino. O Novo Testamento
freqüentemente fala dos judeus em cotejo com os gentios, mas nunca ensina ou
deixa implícito que Deus tenha em mente um futuro separado para Israel,
distinto daquele planejado para os gentios.
Há uma unidade existente entre Israel e a Igreja. Na Nova
Jerusalém estão inscritos tanto os nomes das doze tribos de Israel quanto os
nomes dos doze apóstolos, os primeiros nas doze portas e os últimos nos doze
fundamentos (Apo. 21:12, 14).
A Igreja e Israel assim compartilham não só da mesma
salvação presente, mas também da mesma glorificação e restauração finais. O
futuro de Israel é visto no Novo Testamento, não em termos de um reino milenial
político na Palestina, mas em termos de bênção eterna compartilhada com os
remidos de todas as eras numa nova terra restaurada.
Conclusão
À luz das considerações precedentes concluímos que o ensino
popular promovido por Left Behind [deixados para trás, um popular filme
religioso e série de livros de ficção escatológica] de um desaparecimento
súbito de milhões de cristãos, deixando para trás uma massa de judeus
descrentes e pessoas inconversas, é uma ficção enganosa e não uma verdade
bíblica. A popularidade desse engano pode ser atribuída à falsa premissa de que
os crentes serão poupados de sofrer a tribulação final.
Numa época em que as pessoas engolem toda sorte de
analgésicos para evitar ou aliviar a dor, não surpreende que muitos estejam
dispostos a engolir também o engano de um Arrebatamento pré-tribulacional–um
ensino que promete às pessoas isenção do sofrimento da tribulação final.
Tal ensino atraente, contudo, não carece apenas de suporte
bíblico, mas é também incriminatório do caráter de Deus. Retrata a Deus como um
Ser discriminador que dá tratamento preferencial à Igreja removendo-a de sobre
a Terra, antes de despejar a tribulação final sobre os que são deixados para
trás.
Left Behind [deixados para trás] posiciona a conversão de
muitos descrentes durante a tribulação–um ensino alheio à Bíblia. Repetidamente
o Apocalipse afirma que aqueles que experimentam as pragas finais “não se
arrependeram de sua obras” (Apo. 16:11; 16:9).
Ademais, destrói a unidade e finalidade da Vinda de Cristo,
apresentada nas Escrituras como um evento único que ocorre após a Grande
Tribulação. Nessa ocasião os santos adormecidos serão ressuscitados, os santos
vivos serão transformados, os crentes de todas as eras se reunirão com o
Senhor, e aqueles que são deixados para trás “sofrerão penalidade de eterna
destruição, banidos da face do Senhor” (2 Tess 1:9).
Não haverá uma segunda chance para os que são deixados para
trás quando do Advento, porque o fogo purificador da presença de Cristo
consumirá todos os pecadores e todo o vestígio do pecado: “Virá, entretanto,
como ladrão o dia do Senhor, no qual os céus passarão com grande estrondo e os
elementos se desfarão abrasados; também a terra e as obras que nela existem
serão atingidas” (2 Ped. 3:10). Nossa bendita esperança repousa não sobre a
ficção de desaparecer subitamente no espaço, mas na promessa do retorno de
Cristo para criar “novos céus e uma nova terra nos quais habita a justiça” (2
Ped. 3:13).
Autor: Prof. Samuele Bacchiocchi – atuou como professor de
História Eclesiástica e Teologia na Universidade Andrews até jubilar-se. Ele é
conferencista internacional e autor de vários livros de sua área de especialidade,
tendo sido o primeiro não-católico a doutorar-se pela Pontifícia Universidade
Gregoriana de Roma, ligada diretamente ao Vaticano. Pela qualidade de seu
trabalho académico ali recebeu até medalha de ouro concedida pelo Papa Paulo VI
e um de seus livros foi editado pela gráfica daquela instituição com o
imprimatur da Igreja Católica.
Colaboração: Prof. Azenilto Brito.
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