19/04/10

QUEM ERA O APÓSTOLO PAULO?

“Ele era um homem de pequena estatura”, afirmam os Actos de Paulo, escrito apócrifo do segundo século, “parcialmente calvo, pernas arqueadas, de compleição robusta, olhos próximos um do outro, e nariz um tanto curvo.”

Se esta descrição merecer crédito, podemos ter o perfil desse homem natural de Tarso, que viveu uma vida plenas de acontecimentos extraordinários e que chegou a dizer: “Sede meus imitadores como eu o sou de Cristo”. Tendo esta “biografia” algum valor, ela corresponderias ao que ele próprio diz: “As cartas, com efeito, dizem, são graves e fortes; mas a presença pessoal dele é fraca, e a palavra desprezível” (2 Cor. 10:10).
A sua verdadeira aparência terá de ser deixada por conta dos artistas, pois não sabemos ao certo. Matérias mais importantes, porém, demandam atenção — o que ele sentia, o que ele ensinava, o que ele fazia.
Sabemos o que esse homem de Tarso chegou a crer acerca da pessoa e obra de Cristo, e de outros assuntos cruciais para a fé cristã. As cartas procedentes da sua pena, preservadas no Novo Testamento, dão eloquente testemunho da paixão das suas convicções e do poder da sua lógica.
Aqui e acolá nas suas cartas encontramos pedacinhos de autobiografia. Também temos, nos Actos dos Apóstolos, um amplo esboço das actividades de Paulo. Lucas, autor dos Actos, era médico e historiador gentio do primeiro século.
Assim, enquanto o teólogo tem material suficiente para criar intermináveis debates acerca daquilo em que Paulo acreditava, o historiador dispõe de parcos registos. Quem se der ao trabalho de escrever a biografia de Paulo descobrirá lacunas na vida do apóstolo que só poderão ser preenchidas por conjecturas.
A semelhança de um meteoro brilhante, Paulo surge repentinamente na cena cristã, num período conturbado, do qual ele era o principal precursor. Tudo se altera com a sua conversão. Desaparece por alguns anos de cena cristã. Reaparece no papel de evangelista, e durante algum tempo podemos acompanhar os seus movimentos através do horizonte do primeiro século. Antes da sua morte, ele flameja até entrar nas sombras além do alcance da vista.
A sua Juventude:
Antes, porém, que possamos entender Paulo, o missionário cristão aos gentios, é necessário que passemos algum tempo com Saulo de Tarso, o jovem fariseu. Encontramos em Actos a explicação de Paulo sobre a sua identidade: “Eu sou judeu, natural de Tarso, cidade não insignificante da Cilícia” (Act. 21:39). Esta afirmação dá-nos o primeiro fio para tecermos o pano de fundo da vida de Paulo.
A) Da Cidade de Tarso. No primeiro século, Tarso era a principal cidade da província da Cilícia na parte oriental da Ásia Menor. Embora localizada cerca de 16 km no interior, a cidade era um importante porto que dava acesso ao mar por via do rio Cnido, que passava pelo meio da cidade.
Ao norte de Tarso erguiam-se imponentes montanhas cobertas de neve, as montanhas do Tauro, que forneciam a madeira que constituía um dos principais produtos de comércio dos mercadores tarsenses. Uma im¬portante estrada romana passava a norte, fora da cidade e através de um estreito desfiladeiro nas montanhas, conhecido como “Portas Cilicianas”. Muitas lutas militares antigas foram travadas nessa região entre as montanhas.
Tarso era uma cidade de fronteira, um lugar de encontro do Leste e do Oeste, e uma encruzilhada para o comércio que fluía em ambas as direcções, por terra e por mar. Tarso possuía uma preciosa herança. Os factos e as lendas se entrelaçavam-se, tornando os seus cidadãos orgulhosos do seu passado.
O general romano Marco António concedeu-lhe o privilégio de libera civitas (“cidade livre”) em 42 a.C. Por conseguinte, embora fizesse parte de uma província romana, era autónoma, e não estava sujeita a pagar tributo a Roma. As tradições democráticas da cidade-estado grega de longa data estavam estabelecidas no tempo de Paulo.
Nessa cidade cresceu o jovem Saulo. Nos seus escritos, encontramos reflexos de imagens e cenas de Tarso de quando ele era rapaz. Em nítido contraste com as ilustrações rurais de Jesus, as metáforas de Paulo têm origem na vida citadina.
O reflexo do sol mediterrânico nos capacetes e lanças romanos teriam sido uma visão comum em Tarso durante a infância de Saulo. Talvez fosse este o fundo histórico para a sua ilustração concernente à guerra cristã, na qual ele insiste em que “as armas da nossa milícia não são carnais, e, sim, poderosas em Deus, para destruir fortalezas” (2 Cor. 10:4).
Paulo escreve e usa a palavra “naufragar” (1 Tim. 1:19), “oleiro” (Rom. 9:21), de ser conduzido em “triunfo” (2 Cor. 2:14). Ele compara o “tabernáculo terrestre” desta vida a um edifício de Deus, casa não feita por mãos, eterna, nos céus” (2 Co 5:1). Ele toma a palavra grega para teatro e, com audácia, aplica-a aos apóstolos, dizendo: “nos tornamos um espectáculo (teatro) ao mundo” (1 Cor.¬ 4:9).
Tais declarações reflectem a vida típica da cidade em que Paulo passou os anos de estudo durante a meninice. Assim as imagens e os sons deste azafamado porto marítimo formam um pano de fundo em face do qual a vida e o pensamento de Paulo se tornaram mais compreensíveis. Não é de admirar que ele se referisse a Tarso como “cidade não insignificante”.
Os filósofos de Tarso eram quase todos estóicos. As ideias estóicas, embora essencialmente pagãs, produziram alguns dos mais nobres pensadores do mundo antigo. Atenodoro de Tarso é um esplêndido exemplo.
Embora Atenodoro tenha morrido no ano 7 d.C., quando Saulo não teria mais que uns 10 a 12 anos, durante muito tempo o seu nome permaneceu como herói em Tarso. E quase impossível que o jovem Saulo não tivesse ouvido algo sobre esse histórico personagem.
Quanto, exactamente, foi o contacto que o jovem Saulo teve com esse mundo da filosofia em Tarso? Não sabemos; ele não no-lo disse. Mas as marcas da ampla educação e contacto com a erudição grega o acompanham quando homem feito. Ele sabia o suficiente sobre tais questões para pleitear diante de toda sorte de homens a causa que ele representava. Também estava consciente dos perigos das filosofias religiosas especulativas dos gregos. “Cuidado que ninguém vos venha a enredar com sua filosofia e vãs subtilezas, conforme a tradição dos homens... e não segundo Cristo”, foi sua advertência à igreja de Colossos (Col. 2:8).
B) Cidadão Romano. Paulo não era apenas “cidadão de uma cidade não insignificante”, mas também cidadão romano. Isso nos dá ainda outra pista para o fundo histórico de sua meninice.
Em Act. 22:24-29, vemos Paulo a conversar com um centurião romano e com um tribuno romano. (Centurião era um militar de alta patente no exército romano com 100 homens sob o seu comando; o tribuno, neste caso, seria um comandante militar.) Por ordens do tribuno, o centurião estava prestes a açoitar Paulo. Mas o Apóstolo protestou: “Ser-vos-á porventura lícito açoitar um cidadão romano, sem estar condenado?” (Act. 22:25). O centurião levou a informação ao tribuno, que fez mais inquirição. A ele Paulo não só afirmou a sua cidadania romana mas explicou como se tornara tal: “Por direito de nascimento” (Act. 22:28). Isso implica que o seu pai era cidadão romano.
Podia-se obter a cidadania romana de vários modos. O tribuno, ou comandante, desta narrativa, declara ter “comprado” a sua cidadania por “grande soma de dinheiro” (Act. 22:28). No mais das vezes, porém, a cidadania era uma recompensa por algum serviço de distinção fora do comum ao Império Romano, ou era concedida quando um escravo recebia a liberdade.
A cidadania romana era preciosa, pois prestava-se a direitos e privilégios especiais como, por exemplo, a isenção de certas formas de castigo. Um cidadão romano não podia ser açoitado nem crucificado.
Todavia, o relacionamento dos judeus com Roma não era de todo feliz. Raramente os judeus tornavam-se cidadãos romanos. Quase todos os judeus que alcançaram a cidadania moravam fora da Palestina.
C) De Descendência Judaica. Devemos, também, considerar a ascendência judaica de Paulo e o impacto da fé religiosa da sua família. Ele descreve-se aos cristãos de Filipos como “da linhagem de Israel, da tribo de Benjamim, hebreu de hebreus; quanto à lei, fariseu” (Filep. 3:5). Noutra ocasião ele chamou a si próprio de “israelita da descendência de Abraão, da tribo de Benjamim” (Rom. 11:1).
Desta forma Paulo pertencia a uma linhagem que remontava ao pai do seu povo, Abraão. Da tribo de Benjamim saíra o primeiro rei de Israel, Saul, em consideração ao qual o menino de Tarso fora chamado Saulo.
A escola da sinagoga ajudava os pais judeus a transmitir a herança religiosa de Israel aos filhos. O menino começava a ler as Escrituras com apenas cinco anos de idade. Aos dez, estudava a Mishna com as suas interpretações emaranhadas da Lei. Assim, ele aprofundou a história, os costumes, as Escrituras e na língua do seu povo. O vocabulário posterior de Paulo era fortemente colorido pela linguagem da Septuaginta, a Bíblia dos judeus helenistas.
Dentre os principais “partidos” dos judeus, os fariseus eram os mais estritos, “Os Judeus nos Tempos do Novo Testamento”). Estavam decididos a resistir aos esforços de seus conquistadores romanos de impor-lhes novas crenças e novos estilos de vida. No primeiro século eles tinham-se tornado a “aristocracia espiritual” do seu povo. Paulo era fariseu, “filho de fariseus” (Act. 23.6). Podemos estar certos, pois, de que a sua preparação religioso tinha raízes na lealdade aos regulamentos da Lei, conforme a interpretavam os rabinos. Aos treze anos ele devia assumir responsabilidade pessoal pela obediência a essa Lei.
Saulo de Tarso passou em Jerusalém a sua adolescência “aos pés de Gamaliel”, onde foi instruído “segundo a exactidão da lei. . .“ (Act. 22:3). Gamaliel era neto de Hillel, um dos maiores rabinos judeus. A escola de Hilel era a mais liberal das duas principais escolas de pensamento entre os fariseus. Em Actos 5:33-39 temos um vislumbre de Gamaliel, descrito como “acatado por todo o povo.”
Exigia-se dos estudantes rabínicos que aprendessem um ofício de sorte que pudessem, mais tarde, ensinar sem se tornar um encargo para o povo. Paulo escolheu uma profissão típica de Tarso, fabricar tendas de tecido de pêlo de cabra. A sua perícia nessa profissão proporcionou-lhe mais tarde um grande meio de testemunho na sua obra missionária.
Após completar os seus estudos com Gamaliel, o jovem fariseu provavelmente voltou para sua casa em Tarso onde passou alguns anos. Não temos evidência de que ele se tenha encontrado com Jesus ou que O tivesse conhecido durante o ministério do Mestre na terra.
Da pena do próprio Paulo bem como do livro de Actos vem-nos a informação de que depois ele voltou a Jerusalém e dedicou as suas energias à perseguição dos judeus que seguiam os ensinamentos de Jesus de Nazaré. Paulo nunca pôde perdoar-se pelo ódio e pela violência que caracterizaram a sua vida durante esses anos. “Porque eu sou o menor dos apóstolos”, escreveu ele mais tarde, “. . . pois persegui a igreja de Deus” (1 Cor. 15:9). Noutras passagens ele se denomina “perseguidor da igreja” (Filip. 3:6), “como sobremaneira perseguia eu a igreja de Deus e a devastava” (Gál. 1:13).
Uma referência autobiográfica na primeira carta de Paulo a Timóteo refecte alguma luz sobre a questão de como um homem de consciência tão sensível pudesse participar dessa violência contra o seu próprio povo. “. . . noutro tempo era blasfemo e perseguidor e insolente. Mas obtive misericórdia, pois o fiz na ignorância, na incredulidade” (1 Tim. 1:13). A história da religião está repleta de exemplos de outros que cometeram o mesmo erro. No mesmo trecho, Paulo refere a si próprio como “o principal” dos pecadores” (1 T 1:15), sem dúvida alguma por ter ele perseguido a Cristo e seus seguidores.
D) A Morte de Estêvão. Não fora pelo modo como Estêvão morreu (Act. 7:54-60), o jovem Saulo podia ter deixado a cena do apedrejamento sem emoção alguma, ele que havia tomado conta das vestes dos carrascos. Teria parecido apenas outra execução legal.
Mas quando Estêvão se ajoelhou e as pedras choveram e feriram a sua cabeça indefesa, ele deu testemunho da visão de Cristo na glória, e orou: “Senhor, não lhes imputes este pecado” (Actos 7:60).
Embora essa crise tenha lançado Paulo como perseguir de hereges, é natural supor que as palavras de Estêvão tenham permanecido com ele de sorte que ele se tornou “caçado” também —caçado pela consciência.
E) Uma Carreira de Perseguição. Os eventos que se seguiram ao martírio de Estevão não são agradáveis de ler. A história é narrada num só fôlego: “Saulo, porém, assolava a igreja, entrando pelas casas e, arrastando homens e mulheres, encerrava-os no cárcere” (Actos 8:3).
A Conversão:
A perseguição em Jerusalém na realidade espalhou a semente da fé. Os crentes dispersaram-se e em breve a nova fé estava a ser pregada por toda a parte (cf. Actos 8:4). “Respirando ainda ameaças e morte contra os discípulos do Senhor” (Actos 9:1), Saulo resolveu que já era tempo de levar a campanha a algumas das “cidades estrangeiras” nas quais se abrigaram os discípulos dispersos. O comprido braço do Sinédrio podia alcançar a mais longínqua sinagoga do império em questões de religião. Nesse tempo, os seguidores de Cristo ainda eram considerados como seita herética.
Assim, Saulo partiu para Damasco, cerca de 240 km distante, provido de credenciais que lhe dariam autoridade para, encontrando os “que eram do caminho, assim homens como mulheres, os levasse presos para Jerusalém” (Actos 9:2).
Que é que se passava na mente de Saulo durante a viagem, dia após dia, no pó da estrada e sob o calor escaldante do sol? A auto-revelação intensamente pessoal de Romanos 7:7-13 pode dar-nos uma pista. Vemos aqui a luta de um homem consciencioso por encontrar a paz mediante a observância de todas as pormenorizadas ramificações da Lei.
Deu-lhe isto paz? A resposta de Paulo, baseada nasua experiência, foi negativa. Pelo contrário, tornou-se um peso e uma tensão intoleráveis. A influência do ambiente helenístico de Tarso não deve ser desprezada ao tentarmos encontrar o motivo da frustração interior de Saulo. Depois do seu regresso a Jerusalém, ele deve ter sentido um frustração e um rígido farisaísmo, muito embora professasse aceitá-lo de todo o coração. Ele tinha respirado o ar mais livre durante a maior parte da sua vida, e não poderia renunciar à liberdade a que estava acostumado.
Contudo, era de natureza espiritual o motivo mais profundo da sua tristeza. Ele tentara guardar a Lei, mas descobrira que não poderia fazê-lo em virtude da sua natureza pecaminosa decaída. De que modo, pois, poderia ele ser recto para com Deus?
Com Damasco à vista, aconteceu uma coisa momentosa. Num lampejo cegante, Paulo viu-se despido de todo o orgulho e presunção, como perseguidor do Messias e do Seu povo. Estevão estiva certo, e ele errado. Em face do Cristo vivo, Saulo capitulou. Ele ouviu uma voz que dizia: “Eu sou Jesus, a quem tu persegues;. . . levanta-te, e entra na cidade, onde te dirão o que te convém fazer” (Act. 9:5-6). E Saulo obedeceu.
Durante a sua estada na cidade, “Esteve três dias sem ver, durante os quais nada comeu nem bebeu” (Actos 9:9). Um discípulo residente em Damasco, por nome Ananias, tornou-se amigo e conselheiro, um homem que não teve receio de crer que a conversão de Paulo’ fora autêntica. Mediante as orações de Ananias, Deus restaurou a vista a Paulo.

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